Este jornal estará nas bancas juntamente com as notícias da celebração da restauração da independência em 1 de Dezembro de 1640. Celebração tíbia. O pó esquecido de quase meio milénio (362 anos) junta-se aos desenvolvimentos históricos, que sempre foram favoráveis aos espanhóis. Assim, não admira que se ouça amiúde o desabafo:
- “Se os espanhóis tivessem tomado conta de nós, estaríamos bem melhor!”
Com efeito, não só os ordenados são quase o triplo dos nossos como o custo de vida é bem mais reduzido – o que, expresso em nível de vida, nos dá um déficite muito grande.
Em tempo de globalização, não se compreende que um destino de penúria orgulhosa mova os portugueses (e os bascos, e os galegos, e os timorenses, e os cabo-verdianos, são-tomenses, etc…) a quererem ser independentes.
Quem manda, em nós, de facto e até no papel, é a Espanha, e a Europa, e a NATO. As tropas portuguesas, se já não combatem pelas possessões herdadas das Descobertas, são mobilizadas para paragens há pouco impensáveis, como no caso da Bósnia.
Metade dos prédios de Lisboa e uns bons ‘nacos’ da economia portuguesa já pertencem aos espanhóis. E, da nossa cobarde dependência da Europa, basta dizer que, pela imposição de quotas pesqueiras e agrícolas, nem somos totais senhores de pescar no nosso imenso mar, nem de produzir o leite nos úberes lameiros dos Açores.
Outro dos desabafos (este mais irónico, de portugueses não adormecidos pela’ propaganda’) é que D. Afonso Henriques, para obter a independência, teve de bater na própria mãe.
A península ibérica era uma manta de retalhos formada por reinos: Castelas (Nova e Velha), Aragão, Navarra, Condado Portucalense (Portugal), País basco (este já de outro estrato histórico) Leão, Catalunha… A sua união resultou de um factor externo: a luta contra os Mouros. Castela-a-velha empunhou a bandeira da libertação. Expulsos os Mouros, os Castelhanos encimaram a união que hoje constitui a Espanha, agora estendida de mar a mar (do Atlântico norte e oeste até ao Mediterrâneo).
À face da história, todas as parcelas nacionais teriam legitimidade para se tornarem independentes: desde o nosso pequeno Condado, aos Bascos e à Galiza.
De resto, a questão política sempre foi resolvida em família: os príncipes e princesas portugueses e espanhóis casavam entre si, mesmo quando os reinos estavam em guerra. Quando D. Fernando morreu deixando como descendente D. Beatriz, filha da «aleivosa» espanhola D. Leonor Teles, regressaria a unidade ibérica, pois o reino de Portugal, separado desde D. Afonso Henriques, voltaria para um descendente espanhol. Perante esta perspectiva, ergueu-se a revolução de 1383-85, que mais não é do que a negação dos direitos legítimos dos espanhóis à herança familiar. A nossa dinastia afonsina quebra esse vínculo directo quando é reimplantada num ramo bastardo de D. Pedro, mas filho de portuguesa: D. João, o mestre de Avis.
As guerras da História de Portugal são sempre (excepto as invasões francesas) motivadas por esta quebra da unidade da Ibérica. Quando D. João tomou ‘as rédeas do reino’, os espanhóis atacaram. Aljubarrota foi militarmente a nosso favor. Mas a paz efectiva (desistência da reivindicação da união ibérica) só se fez com a Aliança de Portugal com a Inglaterra, através do casamento de conveniência de D. João com D. Filipa de Lencastre.
Esta Aliança funcionou como um escudo, que manteve à distância os castelhanos e permitiu o encaminhamento das nossas energias para o Mar da Expansão, sempre contra os Mouros - primeiramente a conquista do Norte de África (Ceuta, 1415), depressa interrompida pelos Descobrimentos. O Cabo Bojador data de 1434 e a Índia de 1498.
Isto é: com a morte de D. Fernando sem herdeiro (nosso) do trono originaria a perda da nossa independência para os castelhanos, que eram a família directa. A morte da fina flor da nobreza portuguesa e do próprio D. Sebastião, também sem descendentes, no norte de África (cuja conquista fora levianamente retomada em Alcácer-Quibir), também gerou o vazio de poder que foi legitimamente entregue ao descendente castelhano D. Filipe. Ao contrário do que acontecera após D. Fernando, não ficara vivo qualquer catalisador das forças anímicas portugueses capaz de ‘reinventar’, ou enxertar, outra dinastia. A herança de Portugal, constituída por metade do Mundo, cortado ao meio em Tordesilhas como uma laranja ibérica, passava inteirinha para as mãos dos castelhanos que, assim, ficavam com a ‘laranja’ inteiramente para si.
Os restauradores reagiram somente passados sessenta anos, em 1640. D. João IV e a Casa de Bragança (que ainda hoje é herdeira legítima do trono virtual português) tomaram conta do poder, expulsando os Espanhóis. Estes reagiram com novas guerras mas a aliança com Inglaterra ainda funcionou.
Se houvesse uma reclassificação dos feriados portugueses, o 1º de Dezembro, seria, quanto a nós, o primeiro a desaparecer.
Não estão em perigo os interesses de qualquer sucessão monárquica nem se verifica já qualquer resistência à tomada do poder pelos espanhóis – eles proliferam e prosperam, dando-nos um grande e histórico exemplo de solidez nacionalista, capacidade de empreendimento e alto nível civilizacional.
Isto é riqueza, cultura, nobreza.
Novembro/2002
Texto: Altino Moreira Cardoso (Professor; Escritor e Jornalista).
Imagem: Google
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