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BRINCAR À GUERRA



Amanheceu cedo. Com uma luz clara. O verde das plantas ainda estava fresco do orvalho da noite. Uma gota caiu das folhas novas do castanheiro.

Em tempos normais, seria uma silenciosa e transparente manhã de Junho. O menino olhou pela janela e sorriu. Nem a cratera aberta no chão do quintal, redonda, de terra remexida, no meio do relvado outrora impecável, lhe tirou o sorriso. Um bom dia para brincar. Trincou à pressa um bocado de pão seco. O pai, lento de gestos, na vagarosa tristeza de vestir o casaco coçado, preparava-se para sair. O menino sabia que ele ia para junto dos outros homens ver se calhava, por sorte, uma migalha de trabalho na fábrica metalúrgica, a única que sobrevivia aos tempos felizes e ricos de outrora. A mãe, já não estava em casa.

Discutia rações de manteiga e açúcar com as outras mulheres. Distraído, com o olhar posto longe, o pai deu um beijo ao filho e saiu. Este mastigou depressa o bocado de pão seco. Empurrou-o com água e sentiu-o a deslizar pela garganta abaixo. Deu um pulo para se pôr atrás do armário e fingiu disparar uma metralhadora. Como que por encanto, a criança viu a loiça empilhada saltar desordenadamente, em estilhaços, e a espatifar-se no meio do chão.

- "Uau!", disse o menino. " Agora temos de ir atacar aquele flanco".


Movimentou-se depressa como um militar bem treinado e agachou-se debaixo da mesa. E foi como se visse estilhaços de madeira a saltar do armário de onde tinha saído.

Simulou atirar uma granada para a rua e viu, era capaz de jurar que era verdade, a janela partir-se e um estrondo a acontecer na rua. Saiu de casa.

Era uma manhã de Junho clara e fresca, com um sol a despontar. Uma manhã de fazer brilhar a natureza no esplendor dos verdes, dos amarelos das azedas e dos vermelhos das papoilas. Um silêncio de chumbo parecia querer desmentir a paz da claridade. Onde estavam os pássaros? O menino olhou para a árvore, desconfiado. Num impulso fez o gesto de empunhar a espingarda e disparar para o cimo da árvore. E imaginou a queda de um corpo com o seu baque surdo no chão. A brincadeira estava real. Uau! Hoje, sim, estava mesmo bom para brincar aos soldados. Ele era o herói da terra, o salvador, o bom que derrotara mais de uma dezena de maus. Mas, ainda não tinha a tarefa completa. Os prisioneiros. Tinha de libertar os prisioneiros. Correu para a parte de trás da casa, encostado à parede, aos três metros de cada vez, para olhar para trás. Volta e meia disparava a sua metralhadora para eliminar os inimigos imaginários. Uma metralhadora que não lhe pesava, tal a leveza com que corria.

Para a próxima, tinha de improvisar uma arma de madeira. Aproximou-se do anexo. Mirou-o de alto a baixo e, de repente, viu-o desabar com estrondo. Encostou-se à parede e pôs as mãos nos ouvidos. Como num sonho, viu passar por si dezenas de prisioneiros. Olhavam-no como a um herói, o salvador. Estava impante de orgulho. Imaginou o pai e os outros homens, acabrunhanhados, a mendigar um trabalho à porta da fábrica, vestidos de miséria e desistência. E ele ali, herói. Jamais seria como o pai. Não se deixaria humilhar. Um soldado fez-se para a glória. Olhava para o anexo e parecia-lhe mesmo destruído. Lá longe, ele ouvia estrondos, a batata frita das metralhadoras, ruídos da guerra que ele estava a travar em imaginação. Voltou para a frente da casa, olhou para a cratera que dera cabo do relvado. Aquilo não fora ele que fizera. Olhou para trás e pareceu-lhe mesmo que o anexo estava destruído.


Correu para a porta e, na corrida, quase tropeçou num soldado, imberbe, nos seus 20 anos. Fez um gesto de quem atira uma coisa - a imaginação da brincadeira, sempre a imaginação - e caiu trespassado, com três manchas vermelhas de sangue na camisola amarela, perante o olhar de medo e terror do soldado que preferia estar a imaginar do que a viver. Da sua espingarda saía um fio de fumo, perfeitamente nítido nessa manhã clara de Junho.



Texto: Mário Rui de Melo

(Responsável de Estratégias de Comunicação da Formiga Amarela; Escritor e Jornalista).

Imagens: Google©


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