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A CARTA DO GENERAL

Atualizado: 15 de nov. de 2018

Quando ouviu o ruído do motor do automóvel veio a correr para a janela. Reconheceria aquele motor, mesmo no meio de tráfego cerrado. Aquele carro preto, brilhante, inacreditavelmente limpo, surgia no bairro pela terceira vez em 15 dias. Da primeira, parou frente à casa da Suzete da padaria. Um senhor fardado a rigor e com medalhas no peito saiu depois do motorista lhe abrir a porta com as suas luvas brancas, de uma alvura que contrastava com o preto brilhante do automóvel. Entrou em casa da Suzete, hirto como se estivesse a fazer continência ao Presidente. Os gritos da Suzete, perfeitamente audíveis com a porta fechada, tornaram-se lancinantes quando a porta se abriu para deixar passar o general. Repetiu-se o ritual de abrir e fechar a porta do carro e lá se foi o homem com aquele barulho de motor certinho como um relógio. Da segunda vez, foi junto à casa da D. Clarinda. Repetiu-se a cena. Gritos e choros e a mesma dignidade hirta do general. Esta era a terceira vez e ela estava em pânico. Tinha marido e filho na frente de combate e um terço nas mãos, onde as contas passavam rapidamente pelos dedos nervosos. Ouvia o carro, as suas desacelerações, o pára arranca de quem não sabe o caminho e rezava, com fervor, com palavras rápidas disparadas em surdina para um imaginário santo. … perdoai as


minhas ofensas… O terço emaranhava-se nas mãos. … Senhor Todo Poderoso… Deixou-se cair de joelhos, o motor, que parecia um relógio, avançava direito à sua porta. … não mais cairei em tentação… Dirigia os olhos para o céu mas estes encontravam o tecto da sala. … Senhora, cheia de Graça, dai-me a Graça da tua bondade… O carro arrancou de novo, lentamente, muito lentamente e ela apertava o terço com força. … Senhor, na Tua infinita misericórdia… Devagar, o vulto negro avançava, inexorável, direito à sua porta e ela torcia as mãos num nó impossível. … perdoa a quem te tem ofendido… Até que pareceu ter parado, dois números acima do seu. … eternamente grata, Senhor… Mas, o motor voltava ao seu suave roncar. …Creio na Tua Palavra, Senhor… Até que o carro parou, mesmo frente à sua porta. Rebentou-se o fio e as contas do terço rebolaram pelo chão. Deixou-se cair como um corpo que se abandona, derrotada. … Seja o que deus quiser… Aguardou o soar da campainha, o inevitável anúncio da tragédia. O homem hirto, frio, a ler um papel previamente escrito, a ir ao bolso tirar um relógio ou dois, entregar-lhos, solene, informar as datas das cerimónias fúnebres com honras militares e ela anestesiada, como a viver um sonho mau, olhos secos, coração seco, emoções congeladas para um degelo diluviano. Ela viu tudo no tecto da sala, branco como uma tela de um filme que se repete e repete e repete, abandonada no chão, sem forças, abandonada a um destino de mulher só, amarga, viva por fora, morta por dentro, incapaz de um gesto de ternura a uma criança traquinas. … onde está a tua justiça, ó Deus, onde?… Imaginou o toque da campainha e não tinha a certeza de ter forças para se levantar, abandonada no chão, tombada e sem força anímica. Quase viu, projectada no tecto, a condecoração, a cruz dos heróis, em caixa de veludo azul e pensou que a cruz das esposas e mães era bem mais pesada. … onde estavas, ó Deus quando os obuses romperam o silêncio?… E então, o carro andou. O seu suave roncar deixou ouvir o som do seu deslizar. Parou. Era a casa da sua amiga Arlete, viúva de vivo emigrado no Brasil, com um filho na guerra. Ouviu a porta do carro a abrir-se e teve vergonha da felicidade que sentiu, mesmo sabendo da tragédia que se abatia sobre a sua melhor amiga.


(editado originalmente na Xok magazine online)



Texto: Mário Rui de Melo (Responsável de Estratégias de Comunicação da Formiga Amarela; Escritor e Jornalista).

Imagem: Google©


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38 visualizações1 comentário

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1 Comment


Unknown member
Oct 26, 2018

Gostei. Profundo. Isto é que escrita de crónica.

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